sexta-feira, 29 de maio de 2009

MEU MUNDO DIMINUIU

Ouviu o som da torneira aberta e levantou para ver se ela tinha voltado. Com dificuldade calçou o par de chinelinhos mostarda desbotado, apoiou as mãos na cama e num impulso alcançou o teto do céu.

Num compasso acelerado chegou até a porta. Pôs uma das mãos da maçaneta. Abriu um sorriso. Uma brecha, um suspiro. O coração não, o coração ele deixou bater forte, como o vento. Os olhos chegaram até a porta do banheiro que estava entreaberta. A torneira continuava com um pequeno vazamento, não havia ninguém lá dentro, escorria água pelo rosto. O ralo estava entupido e ele estava pronto para transbordar. A vontade era de voltar para o quarto e continuar pensando que ela tinha voltado, que estava lavando cuidadosamente as mãos para preparar os bolinhos de chuva que ele tanto gostava.

Decidiu ir até a cozinha e ele mesmo preparar a receita da avó, que foi da mãe, da esposa, da filha, da neta... A receita antiga era a ponte frágil que ele usava para se equilibrar e encontrar todas elas em uma grande festa!

Na sua janela em frente ao fogão, um broto de feijão plantado por pequeninas mãos numa escola de bairro. Um presente. A plantinha estava seca. Não chovia e a torneira do banheiro continuava pingando lembranças, uma a uma. Era inverno mas não era, fazia calor. Ele não conseguia compreender, não tinha ninguém para explicar o que acontecia no mundo. No seu mundo. Todos os pares de meia reservados para o frio estavam ali em forma de bolinhas de natal em família, intactos na gaveta, arrematados por mãos muito delicadas.

Chovia muito dentro dele. Abriu a janela para respirar. O céu estava cinza, o sol dourado, o arco-íris pálido tinha apenas duas cores, preto e branco. Uma fotografia de uma época que ainda não tinha chegado na sua TV, emoldurada em forma de notícia.

A chuva estava cada vez mais forte. Correu na velocidade do seu tempo e recolheu tudo, as roupas brancas do varal, os bolinhos, as lembranças, o vento, o broto de feijão, tropeçou numa pérola de um colar arrebentado pelos anos, alcançou uma caixa onde morava uma bailarina e guardou tudo. Seu mundo todo estava ali, reunido, traduzido numa valsa perfeita para dançar assim, olhando nos olhos dela.

3 comentários:

  1. lindo... amiga, vc é minha poetisa das palavras imageticas! vejo as cores, contornos, sombras e luzes dos teus textos!

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  2. o mágico é você encontrar essa caixa onde guardou todas as lembranças depois de anos, depois de ter esquecido que ela existe e então tudo volta de forma tão forte, é como se você tivesse parado de existir durante alguns anos, você não guardou lembranças nesses anos mortos e de repente você se dá conta de que há vida...ainda, dentro de você

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  3. Sempre há. As vezes a visa é sequestrada pelo tempo. Mas volta.

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