quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ESTAÇÃO MEMÓRIA

Sim, naquele dia eu acordei esvaziada e numa tentativa de não me sabotar com tantos atropelos, decidi sair andando, descer correndo uma rua qualquer, sem placas. A ideia era essa, eu não reconheceria o lugar, ninguém me reconheceria e talvez ali eu me esquecesse um pouco de mim no meio dos outros. E só lembraria dela, essa "eu" sozinha no meio do nada. Era um embate difícil, eu comigo mesma. Um confronto adiado fazia anos. E nessa descida até mim na rua inclinada tive então um encontro: uma vitrine imensa de vidro bem limpo, onde eu poderia verdadeiramente me enxergar por um minuto de silêncio. "É ela!" Constatei. Sim... era ela, depois de tanto tempo chuvosa, era ela, ali, numa tentativa de primavera, como nos tempos de antigamente. Na boca pálida começou a florir então um esboço de sorriso que revelava os dentes pequenos de tanta ansiedade. Dentes que se encontravam todas as noites, que rangiam. Que doíam, que se enfrentavam numa tentativa de assassinar aquele monstro assustador que se apresentava todas as noites como "o tal bruxismo". Dentes pequenos, quase infantis começaram a se exibir no meio de uma moldura sardenta. Ela ria. Eu ria. Nós ríamos juntas. Isso durou um longo tempo que só foi interrompido quando percebemos que por trás de nós havia uma lânguida e antiga mulher de plástico, parada, nos olhando firmemente. Em sua cabeça, uma peruca imensa, dessas que revelam a idade. As preferências. As vaidades. Nos encaramos por um tempo. Decidi conhecer a sua casa. Um quadro empoeirado pintado de bolinhas, xadrez, listras. Cores feitas de seda, linho, muitos fios e... veludo! Ah, como eu gostava das saias macias de veludo. Do brilho do tecido debruçado sobre mim nos giros eternos ao som do piano. Das batatas cansadas de tanto vento nas pernas. Dos olhares entre as frestas das rendas que gargalhavam a cada tombo. Dos desenhos feitos de nuvens que se curvavam para me olhar. Decidi então adentrar no labirinto construído de cabides em busca de algo que me transformasse em uma de mim, novamente antiga. Que nos dias de hoje seria velha. Mas tinha parado lá naquela estação. Pequena. Esquecida de tudo. Tropeçando nas peças que gritavam "eu posso levar você até lá" ou "me lembro dessa criança" ou simplesmente "gire comigo e volte no tempo" eu finalmente vi o que queria. Era ela, uma combinação de blusa com fita e botões de madrepérola de um tecido de bolinhas em relevo que agora não lembro o nome. E essa blusa descansava a sua barra preguiçosa em uma saia godê de tecido leve com uma anágua fina, rosa velho. Casa velha. Lembrança velha. Juntas, blusa e saia formavam o meu par perfeito. Num salto estiquei os braços finos prontos para um abraço. Vesti. No espelho surgiu então uma de mim esquecida dentro de um baú trancado pela história. Uma de mim memória que eu queria reencontrar. E foi assim que então, naquele dia, esvaziada de "eu hoje", saí para brincar com uma outra de mim. A de ontem, de outro tempo, que não estava morta. Estava simplesmente esperando ansiosa para dançar.

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