domingo, 12 de setembro de 2010

Ponto entre uma e outra

Duas mulheres paradas num ponto de ônibus com seus guarda-chuvas fechados.

Uma - Dia lindo, lindo, lindo. Mesmo. Parece que eu não tenho o que falar. Qualquer coisa. É tão difícil...

Outra - Sabe se o 7845 passa nesse ponto? Eu preciso pegar esse ônibus, mas não sei o lado. Não sei o sentido. Vi o mapa mas não sei o sentido. Eu sempre acho que eles passam do lado oposto que eu estou. Eu atravesso de um lado para o outro sem parar, sem parar.

Uma - Tenho uma entrevista hoje, pretendo seu consultora. Não quero, pretendo. Você ouviu? Natura, Avon ou Claude Bergere, mas não sei falar francês. Meu irmão fala francês. Não combina com ele, deifinitivamente.

Outra - Você tem medo de escuro? Eu tenho tanto, tanto. A conta de luz é astronômica. É assim que se diz? As-tro-nô-mi-ca? Tenho vergonha de errar.

Uma - Eu gosto de sentir meus calcanhares rachados afundarem na lama. Ando tão descalça ultimamente que meus pés se recusam a...

Outra - Não, não passo cremes. Não gosto. Acho que não combinam comigo. O que você acha?

Uma - Eu acho tão engraçado um homem caçar borboletas com aquela rede e aquele chapéu. Nunca vi, mas imagino. A roupa bege. E depois são delicadamente espetadas com um alfinete. Pra que se já estão mortas?

Outra - Você usa cremes? Sua pele é tão bonita. Tão delicada. Eu conheço muitas mulheres como você. E elas conhecem poucas como eu. Ou pelo menos fingem que não conhecem.

Uma - Gosto de puxar o rosto assim, na frente do espelho. Fico horas me olhando e rindo. (começa a rir) Puxo nariz para cima e imagino que posso quebrá-lo bem no meio só para conseguir uma cirurgia no Plano de Saúde. (o riso vai tomando uma proporção cada vez maior até que a duas começam a gargalhar juntas)

Outra - Quero fazer isso antes de ficar velha e feia. Quando eu for bem velha eu vou cultivar as minhas rugas, uma a uma, vou regá-las dia sim, dia não. Eles vão me largar num asilo vazio, com papéis de parede tão velhos quanto eu e eu vou ter que tomar mingau de arroz todos os dias. E eu talvez queime a garganta num desses dias ou me engasgue. (ela começa a imaginar e começa a se emocionar, fecha os olhos e sente o cheiro do papel) O papel vai ser descascado e ilustrado com flores e vai ter cheiro de mofo. Eu sempre quis ter um quarto com papéis de parede e um criado-mudo com pés palito. Acho tão bonito. Vou percorrer por todos os asilos até encontrar um assim. Quero dias úmidos.

Uma - Todos eles têm, não? Todos eles tem quartos para senhoras como eu, não? (abre a bolsa, tira um espelho e passa um rouge bem claro com um pincel) Gosto assim, dá um ar saudável.

Outra - Eu acho o nariz da minha mãe lindo. Mas ela tinha uma coisa nos olhos. Eu queria ter o nariz dela. Tanta coisa para mudar e eu vou escolher o nariz. Tanta coisa para mexer. Tá tudo bagunçado. Eu vejo até ratos passando por lá. Hoje eu tive um pesadelo que parecia sonho. Você sabe que os ratos passam leptospirose?

Uma - Seu cabelo é liso mesmo? Você faz tratamento Instantâneo para fechar as cutículas e restaurar os cabelos danificados por produtos químicos e agentes externos como sol, vento e poluição?

Outra - Eu menti pra você. Você tem rugas, eu gosto de contra mentiras. Meu ônibus vem vazio. Preciso ir. Sim, passou várias vezes. Eu escolhi ficar aqui.

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